Sé Catedral, Angra.
«Sabendo Jesus que chegara a Sua hora de passar deste mundo para o Pai, Ele, que amara os Seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim».
Estas palavras de S. João introduzem-nos no mais profundo significado da Ceia Pascal de Jesus Cristo. Finalmente a hora que ainda não tinha chegado no inicio dos milagres de Jesus, tal como nos é afirmado na narração das bodas de Caná, adveio no culminar da Sua vida terra. Esta é a hora que projecta luz sobre toda a vida e acção de Jesus Cristo.
Esta é a hora da entrega, do supremo amor de Deus pelos homens, da manifestação plena de Deus feita na pessoa do Seu Filho Jesus.
O amor e a entrega de Jesus Cristo dirige-se àqueles que estão no mundo. Já na conversa com Nicodemos, Jesus lhe tinha afirmado que «Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o Seu Filho único, para que todo o que n’Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o Seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele» (Jo, 3, 16-17).
O sinal pelo qual quer que os seus Apóstolos tomem parte no mistério da Sua entrega está no lavar dos pés. Se por um lado, nos ensina que a vida de Cristo só se compreende no serviço total aos mais humildes e simples, por outro, perante a reacção de Pedro reconhecemos que só pela lavagem que o Baptismo realiza na criatura ela se torna verdadeiramente participante da vida de Deus.
Sim, Jesus Cristo sabia que tão só pela acção do Espirito Santo o mistério da Sua Páscoa e os sinais que acompanham a sua entrega poderão ser compreendidos e assumidos pelos seus discípulos. Por isso, diz a Pedro: «O que te vou fazer, não o podes saber agora; entendê-lo-ás mais tarde».
Neste breve episódio da narração da Ceia pascal, somos convidados a viver como cristãos e discípulos de Jesus Cristo a unidade dos três sacramentos, do Baptismo, da Eucaristia e da Confirmação, e a optarmos pelo único critério digno do ser cristão, o amor, a entrega e o serviço, à imagem de Jesus Cristo.
Se nesta mesma celebração fazemos memória da primeira páscoa que o Povo de Israel foi convidado a celebrar anualmente na sua peregrinação pelo deserto e mesmo na posse da terra prometida, este facto ajuda-nos a reconhecer como finalmente Deus consolida a Sua nova e eterna Aliança no Sangue do Seu próprio Filho. Esta sim é a Aliança definitiva.
Também nós hoje podemos afirmar com S. Paulo «Eu próprio recebi do Senhor o que por minha vez vos transmiti». A presença real de Jesus Cristo na Eucaristia faz parte da acção do Espirito Santo que torna presente o mesmo memorial da Páscoa do Senhor. Por isso, numa comunidade que se reúne, sob a presidência de um sacerdote que realiza o mesmo gesto de Jesus da Última Ceia e pela acção do Espirito Santo, torna-se presente o Cristo vivo para ser alimento dos seus discípulos e para edificar constantemente a Sua Igreja como Corpo de Cristo e Sacramento Universal de Salvação.
Como nos recorda o Santo João Paulo II, na homilia da Ceia do Senhor de 2000, «com a instituição da Eucaristia, Jesus comunica aos Apóstolos a participação ministerial no seu sacerdócio, o sacerdócio da Aliança nova e eterna, em virtude da qual Ele, e somente Ele, é sempre e em toda a parte artífice e ministro da Eucaristia». E, ainda, «os Apóstolos tornaram-se, por sua vez, ministros deste excelso mistério da fé, destinado a perpetuar-se até ao fim do mundo. Tornaram-se contemporaneamente servidores de todos aqueles que vierem a participar em tão grande dom e mistério».
Deste modo, reconhecemos que «a Eucaristia, o supremo Sacramento da Igreja, está unida ao sacerdócio ministerial, nascido também ele no Cenáculo, como dom do grande amor d’Aquele que, “sabendo que chegara a Sua hora de passar deste mundo para o Pai (…) que amara os Seus que estavam no mundo, levou até ao extremo o Seu amor por eles” (Jo 13, 1)».
A Eucaristia, o sacerdócio e o novo mandamento do amor! É este o memorial vivo que contemplamos na Quinta-Feira Santa.
“Fazei isto em memória de Mim”: eis a Páscoa da Igreja! A nossa Páscoa!
O Apóstolo exorta-nos a fazer constante memória deste mistério. Simultaneamente, convida-nos a viver cada dia a nossa missão de testemunhas e anunciadores do amor do Crucificado, à espera do seu retorno glorioso.
É importante reter que a partir desta entrega do Senhor, reconhecemos que no inicio e fundamento da nossa vida cristã está o dom de Deus. Deus não dá algo, mas doa-Se a Si mesmo. Ele permanece continuamente Aquele que Se doa. Oferece-nos sempre de novo os Seus dons. Precede-nos sempre. Por isso a acção principal do ser cristão é a Eucaristia: a gratidão por termos sido gratificados, a alegria pela vida nova que Ele nos dá.
Mas a celebração pascal, a Eucaristia, é sempre compromisso. Por isso, diz Cristo «também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Eu dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também».
Ser cristão é mergulhar a nossa vida no mistério pascal de Cristo e imitar o mesmo Senhor. Ter o mesmo modelo de vida, optar pelos mesmos critérios e valores, sentir-se em comunhão com Deus e com os irmãos, fazer do serviço a única finalidade da existência.
Depreende-se do significado pleno desta celebração que a comunidade que vive a Eucaristia é a mesma que se sente enviada a ir ao encontro dos mais pobres e marginalizados para lhes lavar os pés, isto é, para lhes oferecer com gestos concretos a promoção da sua dignidade.
Viver a Ceia Pascal no contexto do ano da misericórdia é fixar o olhar em Jesus e no seu rosto misericordioso, e n’Ele podemos individuar o amor da Santíssima Trindade.
Como afirma o Papa Francisco, «a missão, que Jesus recebeu do Pai, foi a de revelar o mistério do amor divino na sua plenitude». Deste modo, “Deus é amor” (1 Jo 4, 8.16): afirma-o, pela primeira e única vez em toda a Escritura, o evangelista João».
Reconhecemos então que «agora este amor tornou-se visível e palpável em toda a vida de Jesus. A Sua pessoa não é senão amor, um amor que se dá gratuitamente. O Seu relacionamento com as pessoas, que se abeiram d’Ele, manifesta algo de único e irrepetível. Os sinais que realiza, sobretudo para com os pecadores, as pessoas pobres, marginalizadas, doentes e atribuladas, decorrem sob o signo da misericórdia. Tudo n’Ele fala de misericórdia. N’Ele, nada há que seja desprovido de compaixão» (MV, 8).
Na ternura e na misericórdia, Deus sente-Se responsável, isto é, deseja o nosso bem e quer ver-nos felizes, cheios de alegria e serenos. E, em sintonia com isto, se deve orientar o amor misericordioso dos cristãos. Tal como ama o Pai, assim também amam os filhos. Tal como Ele é misericordioso, assim somos chamados também nós a ser misericordiosos uns para com os outros (cfr. MV, 9).
Por isso, são bem eloquentes e expressivas as palavras de Cristo que nos convidam a seguir o Seu exemplo: assim como Eu vos fiz, fazei-o vós também.
Termino implorando de Nossa Senhora Mãe e Rainha dos Açores que participando na Paixão de Seu Filho nos ensina a fundamentar a nossa vida como discípulos, formando uma autêntica comunidade, centrada na vivência da Eucaristia, e a manifestar em gestos a misericórdia e o amor que recebemos de Jesus Cristo.
Amen
+João Lavrador
24 Março 2016
Bispo de Angra e Ilhas