«Foi para a liberdade que Cristo nos libertou» (Gal.5,1)

A liturgia do tempo quaresmal identifica este itinerário de celebração cristã como um tempo favorável e convida à mudança de vida para uma identificação maior com Jesus Cristo, Homem Novo, e com o amor aos irmãos.

Em cada ano, cada cristão e cada comunidade cristã colocam o seu olhar na Pascoa de Jesus de Nazaré e reconhecem a fonte de vida que d’Ela brota para a Igreja e para o mundo.

É praticamente unanime o sentir de que há uma nova humanidade a edificar, um mundo novo a construir e uma Igreja a purificar com novo rosto que se alimente da Vida Nova de Jesus Cristo, entregue por amor e vivido na experiência da Sua Ressurreição.

Se o itinerário quaresmal é prioritariamente um convite lançado aos baptizados para caminharem decididamente na edificação de comunidades cristãs que testemunhem a alegria e a esperança que brotam da Páscoa de Jesus de Nazaré, é igualmente um tempo para que toda a sociedade se reconheça nos seus males, nas suas chagas e misérias e se confronte com a presença de Jesus Cristo que uma vez encarnado na história dos homens jamais deixará de estar presente.

O Evangelho a ser proclamado é fermento de uma nova humanidade que realça a dignidade humana e confronta os poderes do mundo, a inteligência desamparada e o egoísmo instalado.

O Papa Francisco, na Mensagem da quaresma deste ano, ao convidar a olhar a criação com um olhar mais purificado, oferece um horizonte de universalidade que compromete todas as pessoas de qualquer credo, raça, ou convicção ideológica.

Afirma o Papa que «se não estivermos voltados continuamente para a Páscoa, para o horizonte da Ressurreição, é claro que acaba por se impor a lógica do tudo e imediatamente, do possuir cada vez mais» (Mensagem da quaresma 2019, nº 2).

E, acrescenta que «a causa de todo o mal é o pecado, que, desde a sua aparição no meio dos homens, interrompeu a comunhão com Deus, com os outros e com a criação, à qual nos encontramos ligados antes de mais nada através do nosso corpo» (Ib, nº2). Deste modo, «rompendo-se a comunhão com Deus, acabou por falir também a relação harmoniosa dos seres humanos com o meio ambiente, onde estão chamados a viver, a ponto de o jardim se transformar num deserto (cf. Gn 3, 17-18)» (Ib., nº 2).

Na verdade, conclui o Papa Francisco, «trata-se daquele pecado que leva o homem a considerar-se como deus da criação, a sentir-se o seu senhor absoluto e a usá-la, não para o fim querido pelo Criador, mas para interesse próprio em detrimento das criaturas e dos outros» (Ib., nº 2).

A imagem do deserto purificador da caminhada do Povo Biblico, do silêncio regenerador experimentado pelo próprio Jesus de Nazaré e pela solidão que propicia o verdadeiro sentido da vida, a Igreja percorre os caminhos da quaresma de olhar fixo em Cristo e na Sua Páscoa para poder renovar-se, despojar-se e viver em profundidade o amor a Deus e aos irmãos.

Assim, pela escuta mais assídua da Palavra de Deus, pela oração mais intensa, pela ascese pessoal, pela celebração mais activa e frutuosa dos sacramentos, pelo jejum e exercicios de despojamento e pela participação mais comprometida na comunidade cristã, o baptizado e a comunidade onde se integra fortalecerão a comunhão de vida com Jesus Cristo e prepararão o seu ser para o envio que a vivência do Ressuscitado exige.

A quaresma torna-se, deste modo, preparação para a missão. Isto é, anunciar pela palavra e pelos gestos a libertação que Jesus Cristo nos trouxe pela Sua Páscoa e torná-la presente no mundo actual.

A sociedade de hoje é sensível a tudo aquilo que vá contra a liberdade humana. Mas é a mesma sociedade que cria as condições para a guerra, para a forme, para a solidão, para o desespero, para a falta de sentido da vida e tantos outros males que atormentam o ser humano que dão azo a tantos emigrados, refugiados, desempregados, tiranias e excluídos.

A verdadeira libertação está no interior de cada pessoa e não pode prescindir de Deus. A propósito refere S. João: «conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres» (Jo.8,32).

Caminhar na verdade é uma exigência para toda a pessoa. Iluminados pela Palavra de Deus que marca as etapas do itinerário quaresmal, ajudados pelos sinais reveladores da presença amorosa de Deus, estimulados pela Luz que em Jesus Cristo apaga as sombras e as trevas da nossa existência e pelo convite à conversão para orientarmos a nossa vida pelo sentido que nos é oferecido pela Ressurreição de Cristo que destrói o pecado, o mal e a morte, faremos, então,  a experiência da Vida Nova sonhada, ainda não alcançada, mas oferecida por Deus no Seu Filho Jesus Cristo.

O Santo Padre na referida mensagem, com o olhar na expectativa e na espera «impaciente» da criação, convida os cristãos a manifestarem-se como filhos de Deus porque esta espera só será satisfeita quando os cristãos e todos os homens entrarem decididamente neste “parto” que é a conversão.  Aliás, «juntamente connosco, toda a criação é chamada a sair “da escravidão da corrupção, para alcançar a liberdade na glória dos filhos de Deus”» (Rm 8, 21) (Ib. nº 3).

De facto, como sublinha o Papa Francisco, «a Quaresma é sinal sacramental desta conversão». E, deste modo, «ela chama os cristãos a encarnarem, de forma mais intensa e concreta, o mistério pascal na sua vida pessoal, familiar e social, particularmente através do jejum, da oração e da esmola» (Ib., nº3).

Por último, porque a renuncia que todos somos chamados a fazer ao longo da quaresma deve converter-se em ajuda aos mais necessitados, anuncio que o contributo penitencial será entregue à Diocese de São Tomé e Principe, nomeadamente para as Irmãs da Sagrada Família, no Príncipe, para os idosos do seu Centro de Dia e da Casa Betânia, que vivem com muitas carências.

«Acolhendo na nossa vida concreta a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte, atrairemos também sobre a criação a sua força transformadora» (Ib., nº 3).

Imploro as bênçãos de Deus para uma santa caminhada quaresmal.

 

+João Lavrador, Bispo de Angra e Ilhas dos Açores