Sé Catedral.
«Eu próprio recebi do Senhor o que por minha vez vos transmiti». Tal como S. Paulo, também nós, hoje, podemos afirmar que recebemos do Senhor o maravilhoso convite a participar no banquete Eucaristico que permanentemente celebra a Páscoa do Senhor; e mais ainda, da riqueza saboreada neste banquete surge o imperativo de comunicar esta experiência fundamental para a vida em Cristo.
Já na linguagem de S. João reconhecemos não só o facto da Ceia Pascal enquanto realização plena da Aliança que Deus estabeleceu com o Seu Povo descrita na primeira leitura, com a qual celebraria a libertação do Egipto, mas o seu significado na vida dos Apóstolos, da Igreja, da Comunidade cristã e de cada discípulo de Jesus Cristo.
Começa o texto por afirmar que agora sim chegou a hora não só da passagem de Jesus para o Pai, mas sobretudo de revelar o amor infinito de Deus. Na verdade, no inicio do Evangelho de S. João, na narração das Bodas de Caná, sublinha-se que Jesus perante a solicitação de Sua Mãe, afirma que ainda não chegou a Sua hora. Deste modo, o Evangelista, liga estes dois factos, o primeiro milagre e a celebração da ceia Pascal memorial perene da entrega de Jesus Cristo pela vida do mundo.
Se esta é a hora, caros cristãos, aproveitemos o profundo significado desta hora que nos toca viver e na qual Jesus de Nazaré continua a querer celebrar a Páscoa connosco, seus discípulos e a ensinar-nos o seu significado mais profundo e os comportamentos que dela surgem para a missão no meio do mundo.
A cena do Evangelho que acabamos de escutar está marcada pelo lava pés e pela reacção de Pedro. Detenhamo-nos então nestes dois episódios que nos convidam a assumi-los como nossos, que nos questionam sobre o nosso modelo de vida e nos preparam para a missão junto dos irmãos.
Com a atitude do lavar os pés aos Seus discípulos, Jesus de Nazaré, tal como manifestou muitas vezes na Sua pregação, exorta ao serviço humilde e simples. Provoca os poderes do mundo para assumirem a missão de serviço aos mais pobres e excluídos, mas sobretudo, convoca os Seus Apóstolos para serem testemunhas desta nova forma de estar no meio do Seu povo servindo.
Esta iniciativa divina permite-nos contemplar também as águas do baptismo com as quais Jesus Cristo nos purifica e nos prepara para vivermos, numa participação activa, no mistério da Sua entrega e usufruirmos da novidade da Sua Ressurreição. Já não estamos tão só num rito de purificação, mas muito mais, estamos perante a conversão e o lavar de todo o pecado que nos impedem de participar no banquete com Cristo e nEle estabelecer a comunhão de vida que brota da Ceia pascal.
Nesta mesma linha de actuação está a reacção de Pedro. Este preso a si mesmo, às suas ideias, à sua forma de entender a sua relação com o Mestre, sente como absurdo que o seu Senhor se debruce para lavar os pés aos seus discípulos. Na verdade, este pode ser um dos maiores impedimentos que se colocam também hoje na descoberta do verdadeiro Senhor e Salvador, Jesus Cristo, que se abaixa para nos servir, que toma a iniciativa de nos lavar, purificar e nos elevar até nos colocar à Sua mesa partilhando do Seu próprio ser.
Urge desprendermo-nos das nossas formas próprias de forjarmos a pessoa de Jesus de Nazaré e deixarmo-nos transformar, na mente e no coração, pela revelação que Ele mesmo faz de Si mesmo.
Daí, a resposta que Ele dirige a Pedro e a cada um de nós «se Eu não te lavar não terás parte comigo».
De facto, este gesto de Jesus Cristo desarma-nos na nossa arrogância, nos nossos preconceitos, na forma de fabricarmos a nossa religião. Pelo contrário, Ele toma a iniciativa, vem ao nosso encontro, coloca-se perante nós na atitude de servo para daí nos transformar e nos fazer participantes da Sua vida.
É sem dúvida para nós a pergunta que Jesus, novamente sentado à mesa, dirige aos seus discipulos dizendo «compreendeis o que vos fiz?».
Este é o grande desafio que nos é lançado não só à nossa inteligência mas sobretudo à nossa experiência de cristãos.
Daí algumas consequências que são linhas de orientação para a nossa vida cristã.
Em primeiro lugar, centrarmos a nossa vida cristã na Eucaristia, a celebração permanente da Ceia Pascal de Jesus Cristo. Sentirmo-nos permanentemente convocados para este banquete onde Jesus Cristo se dá na Sua Palavra e no Seu Corpo e Sangue.
Aceitarmos, seguidamente, que pela regeneração baptismal e pelo lavar do pecado que Jesus nos oferece pelos Seus sacramentos, somos transformados em pessoas de comunidade e de relação. Numa cultura individualista, egocêntrica e auto-referencial, necessitamos de um banho de graça divina para nos transformarmos naquilo que verdadeiramente somos, pessoas em partilha comunitária.
Por último a missão de serviço. A Eucaristia é alimento de todo o Apóstolo que é enviado ao meio do mundo para testemunhar a Boa Nova da Salvação. Fá-lo em atitude de serviço à pessoa e à sociedade.
Nas circunstâncias actuais de impossibilidade de nos congregarmos em comunidade à volta do mesa eucarística, pelos efeitos desta pandemia, somos convidados a implorar do Senhor da Vida e dos acontecimentos que nos liberte deste fragelo e que nos alimente a fome eucaristia e o desejo de participar activamente na comunidade cristã.
Como afirma o Papa Bento XVI, «aquilo de que o mundo tem necessidade é do amor de Deus, é de encontrar Cristo e acreditar n’Ele. Por isso, a Eucaristia é fonte e ápice não só da vida da Igreja, mas também da sua missão: “ Uma Igreja autenticamente eucarística é uma Igreja missionária”» (SC., 84). De facto, «havemos, também nós, de poder dizer com convicção aos nossos irmãos: ”nós vos anunciamos o que vimos e ouvimos, para que estejais também em comunhão connosco”» (1 Jo 1, 2-3) (SC., 84).
De acordo com o texto da Exortação post-sinodal «Sacramentum Caritatis», reconhecemos que «verdadeiramente não há nada de mais belo do que encontrar e comunicar Cristo a todos! Aliás, a própria instituição da Eucaristia antecipa aquilo que constitui o cerne da missão de Jesus: Ele é o enviado do Pai para a redenção do mundo (Jo 3, 16-17; Rm 8, 32)» (SC., 84).
Na verdade, «na Última Ceia, Jesus entrega aos seus discípulos o sacramento que actualiza o sacrifício que Ele, em obediência ao Pai, fez de Si mesmo pela salvação de todos nós» (SC., 84). Deste modo, «não podemos abeirar-nos da mesa eucarística sem nos deixarmos arrastar pelo movimento da missão que, partindo do próprio Coração de Deus, visa atingir todos os homens; assim, a tensão missionária é parte constitutiva da forma eucarística da existência cristã» (SC., 84).
Em plena caminhada sinodal a que nos propomos a nível da diocese, mobilizando todas as comunidades cristãs, provocando a participação activa de todos os baptizados na missão da Igreja, exige-nos uma consciência muito lúcida da prioridade fundamental da participação na Eucaristia e do dinamismo eucarístico que nos impulsiona para a missão evangelizadora do mundo de hoje.
No interior da vivência eucarística podemos afirmar «a beleza de caminharmos juntos em Cristo».
Imploro de Nossa Senhora. Mãe e Rainha dos Açores, Mulher Eucaristica, que nos encaminhe para uma vivência da Eucaristia que nos faça viver na comunhão e nos desperte para a missão de anuncio e testemunho do Seu Filho no meio do nosso mundo.
Amen
+João Lavrador, Bispo de Angra e Ilhas dos Açores