Salão do Seminário Episcopal de Angra.
As Obras de Misericórdia e a Catequese
Este ano, por determinação do Santo Padre, foi dedicado à experiência da misericórdia divina e a traduzir a misericórdia na acção concreta da Igreja, de cada comunidade cristã e de cada pessoa.
A misericórdia é uma experiência de relação e de partilha pessoal que envolve a totalidade da pessoa. Tem a sua iniciativa em Deus mas projecta-se na pessoa humana para a sua compreensão e sentido último.
A misericórdia como revelação do ser de Deus tem de entrar na catequese enquanto caminho para o encontro com Deus; a misericórdia revela-se na sua presença história na encarnação de Jesus Cristo e, deste modo, a pessoa do Filho de Deus é a revelação perfeita do rosto misericordioso do Pai; a misericórdia projecta-se e entra na experiência humana e, deste modo, assume uma feição antropológica para a compreensão do ser humano; a misericórdia vive e partilha-se numa comunidade testemunhal, a Igreja e cada comunidade cristã, e por isso a sua dimensão eclesial; a misericórdia, nas suas 14 obras, volta-nos para uma sociedade com tantos excluídos e marginalizados, pobres e negligenciados.
A pergunta que devemos fazer é esta: como viver e integrar as obras de misericórdia na catequese.
- A descoberta do rosto de Deus. Deus é misericórdia.
As obras de misericórdia partem e fundamentam-se no rosto misericordioso de Deus.
Ao longo de toda a Escritura deparamo-nos com esta revelação: Deus é misericórdia. Basta lembrar o salmo 136 que descreve a obra da criação e a história da salvação, a liança estabelecida por Deus e a presença de Deus na história do Povo de Israel e que perante cada enunciado afirma como refrão «é eterna a sua misericórdia ou é eterno o seu amor.
Perante a infidelidade do Povo de Israel, Deus apresenta-se cheio de ternura e de misericórdia. Caso paradigmático está em Oseias que nos diz: «Depois disto, os filhos de Israel voltarão e buscarão o Senhor, seu Deus, e David, seu rei: recorrerão, temerosos, ao Senhor e à sua bondade, no final dos tempos» (Os. 3, 5).
Também muito elucidativa é a oração de Abraão a implorar a misericórdia de Deus sobre os habitantes de Sodoma e Gomorra (Gen. 18) que termina sempre com Deus a manifestar a sua misericórdia.
« ”Paciente e misericordioso” é o binómio que aparece, frequentemente, no Antigo Testamento para descrever a natureza de Deus. O facto de Ele ser misericordioso encontra um reflexo concreto em muitas acções da história da salvação, onde a sua bondade prevalece sobre o castigo e a destruição», pode ler-se na Buka Misericordiae Vultus, nº 6).
Em suma, diz-nos o Papa Francisco «a misericórdia de Deus não é uma ideia abstracta mas uma realidade concreta, pela qual Ele revela o seu amor como o de um pai e de uma mãe que se comovem pelo próprio filho até ao mais íntimo das suas vísceras. É verdadeiramente caso para dizer que se trata de um amor “visceral”. Provém do íntimo como um sentimento profundo, natural, feito de ternura e compaixão, de indulgência e perdão» (ib. nº 6).
- A revelação do rosto misericordioso de Deus através de Jesus Cristo
Jesus Cristo é a revelação plena de Deus. Neste sentido, nos fala a Carta aos Hebreus que diz: «Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por meio de quem fez o mundo. Este Filho, que é resplendor da sua glória e imagem fiel da sua substância e que tudo sustenta com a sua palavra poderosa» (Heb. 1, 1-3).
Toda a vida de Jesus de Nazaré é revelação da misericórdia divina. Contudo, ela está muito presente em diversas parábolas, nomeadamente do Filho Pródigo, do Bom Pastor ou do Samaritano…Nas quais manifesta o rosto misericordioso do Pai.
Como refere o Santo Padre «nas parábolas dedicadas à misericórdia, Jesus revela a natureza de Deus como a dum Pai que nunca se dá por vencido enquanto não tiver dissolvido o pecado e superada a recusa com a compaixão e a misericórdia. (…)Deus é apresentado sempre cheio de alegria, sobretudo quando perdoa. Nelas, encontramos o núcleo do Evangelho e da nossa fé, porque a misericórdia é apresentada como a força que tudo vence, enche o coração de amor e consola com o perdão» (MV, nº 9).
E, prossegue sublinhando que «a parábola contém um ensinamento profundo para cada um de nós. Jesus declara que a misericórdia não é apenas o agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus verdadeiros filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia, porque, primeiro, foi usada misericórdia para connosco. O perdão das ofensas torna-se a expressão mais evidente do amor misericordioso e, para nós cristãos, é um imperativo de que não podemos prescindir. Tantas vezes, como parece difícil perdoar! E, no entanto, o perdão é o instrumento colocado nas nossas frágeis mãos para alcançar a serenidade do coração» (Ib., nº 9).
Na Sagrada Escritura, como se vê, a misericórdia é a palavra-chave para indicar o agir de Deus para connosco. Ele não Se limita a afirmar o seu amor, mas torna-o visível e palpável. Aliás o amor, a ternura e a misericórdia são sempre muito concretos.
- A Comunidade Cristã é reflexo e testemunha da misericórdia divina
O mistério de Jesus Cristo está presente na Comunidade Cristã. Pela acção do Espirito Santo, as Palavras e os gestos de Jesus de Nazaré tornam-se palavra e gestos salvíficos na comunidade crente.
Deste modo a misericórdia presente na vida de Jesus Cristo é agora vivida e testemunhada na vida da Igreja.
Assim o afirma o Papa Francisco ao dizer que «a arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua acção pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo. A Igreja “vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia ”» (MV, 10).
Mais ainda, realça-se que «sem o testemunho do perdão, resta apenas uma vida infecunda e estéril, como se se vivesse num deserto desolador. Chegou de novo, para a Igreja, o tempo de assumir o anúncio jubiloso do perdão. É o tempo de regresso ao essencial, para cuidar das fraquezas e dificuldades dos nossos irmãos. O perdão é uma força que ressuscita para nova vida e infunde a coragem para olhar o futuro com esperança» (Ib. 10).
A Igreja comprometida com a Nova Evangelização tem de dar prioridade ao testemunho da misericordia. Di-lo o Papa com as seguintes palavras: «a Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa». E, ainda, «a Esposa de Cristo assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém». Deste modo, «no nosso tempo, em que a Igreja está comprometida na nova evangelização, o tema da misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmo e uma acção pastoral renovada. É determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia. A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressar ao Pai, devem irradiar misericórdia» (MV, 12).
Para o Papa Francisco no seguimento do papa S. João Paulo II e despertando para o mais intimo da experiência cristã, a primeira verdade da Igreja é o amor de Cristo. E, a partir de tal verdade, «deste amor que vai até ao perdão e ao dom de si mesmo, a Igreja faz-se serva e mediadora junto dos homens. Por isso, onde a Igreja estiver presente, aí deve ser evidente a misericórdia do Pai». Concretamente, «nas nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde houver cristãos –, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia» (MV, 12).
- A misericórdia na compreensão do homem
A misericórdia é uma categoria importantíssimo na perspectiva antropológica. Sem a misericórdia o ser humano fica sem verdadeira compreensão.
O Papa Francisco resume muito bem esta visão antropológica da misericórdia com as seguintes palavras: «Se uma pessoa não quer incorrer no juízo de Deus, não pode tornar-se juiz do seu irmão. É que os homens, no seu juízo, limitam-se a ler a superfície, enquanto o Pai vê o íntimo. Que grande mal fazem as palavras, quando são movidas por sentimentos de ciúme e inveja! Falar mal do irmão, na sua ausência, equivale a deixá-lo mal visto, a comprometer a sua reputação e deixá-lo à mercê das murmurações».
Assim, «não julgar nem condenar significa, positivamente, saber individuar o que há de bom em cada pessoa e não permitir que venha a sofrer pelo nosso juízo parcial e a nossa pretensão de saber tudo». E, acrescenta que «isto ainda não é suficiente para se exprimir a misericórdia. Jesus pede também para perdoar e dar. Ser instrumentos do perdão, porque primeiro o obtivemos nós de Deus. Ser generosos para com todos, sabendo que também Deus derrama a sua benevolência sobre nós com grande magnanimidade» (MV, 14).
O Concilio ao referir-se ao ser humano diz que «a natureza espiritual da pessoa humana encontra e deve encontrar a sua perfeição na sabedoria, que suavemente atrai o espírito do homem à busca e amor da verdade e do bem, e graças à qual ele é levado por meio das coisas visíveis até às invisíveis».
Prossegue sublinhando que «mais do que os séculos passados, o nosso tempo precisa de uma tal sabedoria, para que se humanizem as novas descobertas dos homens. Está ameaçado, com efeito, o destino do mundo, se não surgirem homens cheios de sabedoria. E é de notar que muitas nações, pobres em bens económicos, mas ricas em sabedoria, podem trazer às outras inapreciável contribuição.
Realça, então, que «pelo dom do Espírito Santo, o homem chega a contemplar e saborear, na fé, o mistério do plano divino» ( GS, 15).
Na descoberta da sua dignidade, o homem no fundo da própria consciência «descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo». Mais ainda, «o homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. Deste modo, «a consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo» (GS, 16).
Em Cristo Homem Novo, o homem contempla a meta para a qual se sente orientado. Por isso diz o Concilio que «na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. Adão, o primeiro homem, era efectivamente figura do futuro, isto é, de Cristo Senhor. Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime» (GS, 22).
- As Obras de misericórdia voltam o cristão para a sociedade
As obras de misericórdia oferecem uma leitura da realidade da sociedade a necessitar da actuação do cristão e da comunidade cristã.
Mas esta actuação é feita na identificação a Jesus Cristo: «Todas as vezes que fizestes isto a um dos mais pequeninos foi a mim que o fizestes».
Esta é a profundidade com que se olha o irmão necessitado e este é o alcance da globalidade das necessidades emergentes da realidade social.
O Papa convida a empenharmo-nos nas situações concretas de exclusão quando afirma que «fazer a experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática. Quantas situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo actual! Quantas feridas gravadas na carne de muitos que já não têm voz, porque o seu grito foi esmorecendo e se apagou por causa da indiferença dos povos ricos».
Assim, «a Igreja sentir-se-á chamada ainda mais a cuidar destas feridas, aliviá-las com o óleo da consolação, enfaixá-las com a misericórdia e tratá-las com a solidariedade e a atenção devidas. Não nos deixemos cair na indiferença que humilha, na habituação que anestesia o espírito e impede de descobrir a novidade, no cinismo que destrói».
Pelo contrário, «abramos os nossos olhos para ver as misérias do mundo, as feridas de tantos irmãos e irmãs privados da própria dignidade e sintamo-nos desafiados a escutar o seu grito de ajuda. As nossas mãos apertem as suas mãos e estreitemo-los a nós para que sintam o calor da nossa presença, da amizade e da fraternidade. Que o seu grito se torne o nosso e, juntos, possamos romper a barreira de indiferença que frequentemente reina soberana para esconder a hipocrisia e o egoísmo» (MV, 15).
Para o Santo Padre importa descobrir as obras de misericórdia corporal e espiritual. Diz ele que «será uma maneira de acordar a nossa consciência, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do Evangelho, onde os pobres são os privilegiados da misericórdia divina».
Não podemos ignorara que «a pregação de Jesus apresenta-nos estas obras de misericórdia, para podermos perceber se vivemos ou não como seus discípulos. Redescubramos as obras de misericórdia corporal: dar de comer aos famintos, dar de beber aos sedentos, vestir os nus, acolher os peregrinos, dar assistência aos enfermos, visitar os presos, enterrar os mortos. E não esqueçamos as obras de misericórdia espiritual: aconselhar os indecisos, ensinar os ignorantes, admoestar os pecadores, consolar os aflitos, perdoar as ofensas, suportar com paciência as pessoas molestas, rezar a Deus pelos vivos e defuntos» (MV, 15).
E sobretudo não nos esqueçamos que será por esta forma de conduta que seremos julgados, segundo as Palavras de Jesus.
Em cada um destes « mais pequeninos », está presente o próprio Cristo. A sua carne torna-se de novo visível como corpo martirizado, chagado, flagelado, desnutrido, em fuga … a fim de ser reconhecido, tocado e assistido cuidadosamente por nós.
A catequese tem de atender a todas estas dimensões para uma verdadeira iniciação cristã. Como experimentar a misericórdia e viver a misericórdia partilhando-a?