Ilha de São Jorge. Calheta.
O que mais impressiona na vida da jovem Catarina, de Alexandria, que do Egipto de século III/IV chega o seu culto à Calheta de São Jorge, no século XV/XVI como modelo/padrão de vida dos seus fregueses, que quer dizer, filhos da Igreja, é a sua humildade, pureza, coragem e testemunho.
Como bela e sábia princesa procurava um noivo para casamento à altura dela. Ninguém apareceu como desejava. Queixou-se então a um velho ermita. Este alertou-a para um sinal que a Virgem Maria, com o Menino pela mão, lhe haveria dar. Maria pergunta a Catarina: «gostas d’Ele?» «Oh, sim, gosto». E a Virgem perguntou ao Filho «Gostas dela?» «Não, é muito feia», respondeu o Menino. Catarina fica desolada e volta a queixar-se ao velho ermita. Este esclarece então que não se trata da beleza do corpo, mas sim da sua orgulhosa alma. E começou, tal catequista, a instruí-la nas verdades da fé. Catarina pediu o batismo e tornou-se uma jovem humilde, a quem se aplica as palavras do evangelho: «Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus». Catarina passou então a preocupar-se mais com a beleza da alma que com a beleza exterior.
Quando o imperador passou por Alexandria para perseguir os cristãos Catarina enfrentou-o de um modo tão sábio e douto que desmascarou a religião pagã. O imperador reúne então um conselho de cinquenta filósofos e todos se deixaram convencer e converteram-se. Por isso é considerada padroeira dos estudantes, filósofos e professores, estendendo-se o culto por todo o mundo, desde a Universidade de Paris ao Estado de Santa Catarina no sul do Brasil.
Quem dera que cada um de nós fizesse o percurso de vida da jovem Catarina que, numa experiência mística ou espiritual, se encontrou com Cristo e mudou radicalmente a sua vida, dando de tal modo testemunho d’Ele que mereceu a palma do martírio.
Saímos de um tempo complexo que já quase nos esquecemos do confinamento, de uma guerra e de um tremendo susto pela crise sismo vulcânica que alterou o modo de vida em São Jorge durante este ano, com metade da ilha a fugir de um concelho e outra metade preparada para receber os seus concidadãos. Felizmente estamos desconfinados, sem fins, barreiras ou fronteiras que nos limitem. Não é bem assim, pois quem vive numa ilha é de algum modo um eterno confinado, que ora olha para o Céu, para o horizonte e para o mar, vezes sem fim e neles encontra o seu desconfinamento.
Calheta é a designação de uma pequena passagem que a lava de um vulcão solidificou para que do mar se entre na ilha e por essa pequena calha se saia dela e se possa voltar, com embarques e desembarques sucessivos, tal como fajã é o termo do território, do chão ou uma plataforma de confinamento e desconfinamento, de acessos por terra ou por via marítima.
Este concelho é maior que o seu próprio território, tão caro por ser precioso como dispendioso por nele habitar. Espraia-se desde Nossa Senhora do Rosário do Vila do Topo com as suas gentes e fajãs dos Cubres, das Cubas e da Fajãzinha, passando por Santo Antão com as suas fajãs a sul do Labaçal, da Coqueira, do Cruzal, do Cardoso, da Saramagueira e de São João, e a norte de Entre Ribeiras, do Castelhano, do Salto Verde, do Norte das Fajãs, da Ribeira Funda, do Norte do Estreito e do Nortezinho, descendo por São Tiago da Ribeira Seca com as suas fajãs do Além, do Ginjal, das Barreiras, do Cavalete, dos Bodes, da Fonte do Nicolau, dos Vimes e da Fragueira, até São Lázaro do Norte Pequeno com as fajãs do Mero, dos Avezinhos, das Funduras, da Abelheira, da Penedia, das Pontas, da Neca e da Betesga até chegarmos a Santa Catarina da Calheta com as suas fajãs Grande e da Feiteira.
Falar de Santa Catarina é também falar do trabalho da pesca e do seu processamento, da agricultura e das cooperativas do queijo, fonte de sustento para tantas famílias do concelho, que alternam o labor com o recreio nas suas filarmónicas que tanto têm contribuído, entre outras instituições de carater educativo, cultural, social e desportivo para o bem-estar, que é o bem ser das gentes desta ilha.
Estamos agradecidos à proteção divina que mais uma vez poupou vidas e bens, mas também aos serviços regionais e municipais de proteção civil e às forças armadas portuguesas, que aqui puseram os dispositivos de segurança e socorro para que o desconfinamento acontecesse se necessário, como em nenhuma das crises anteriores foi possível dispor de tantos recursos materiais e cautelas humanas.
A tempestade ou a crise sismo vulcânica recorda-nos a vulnerabilidade, com a qual temos de contar. Vivemos sobre umas fogueiras do mar que chamamos de ilhas, que ainda fumegam. Todos somos chamados a perseverar com realismo e diligência a tratar com sabedoria das nossas feridas, pois essa é a condição de tudo o que está sobre este mundo.
A etimologia latina da palavra comunidade (communitas) associa dois termos, cum e munus, explicando que os membros de uma comunidade humana e cristã não estão unidos por uma raiz ocasional. Estão ligados por um múnus, isto é, por um comum dever, por uma tarefa partilhada. Perguntemos então: Que tarefa é essa? O que me compete? Qual é a primeira tarefa de uma comunidade? Cuidar da vida. Não há missão mais grandiosa, humilde, criativa ou atual.
Celebrar este dia significa «reabilitar o pacto comunitário que é a nossa raiz. Sentir que fazemos parte uns dos outros, empenharmo-nos na qualificação fraterna da vida comum, ultrapassando a cultura da indiferença e do descarte. Uma comunidade desvitaliza-se quando perde a dimensão humana, quando deixa de colocar a pessoa humana no centro, quando não se empenha em tornar concreta a justiça social, quando desiste de corrigir as assimetrias que nos desirmanam, quando, com os olhos postos naqueles que se podem posicionar como primeiros, se esquece daqueles que são os últimos».
Para que tal não aconteça fizemos os olhos em Jesus Cristo, pois n’Ele «todos os confins da terra viram a salvação do nosso Deus». Foi essa a certeza de Catarina e é hoje a nossa também.
Hélder, Administrador Diocesano de Angra