Lajes do Pico.
Reúne-nos a celebração do centenário do Jornal «Dever». É ocasião de gratidão e reconhecimento, de discernimento e de acção em ordem ao futuro.
Certamente trazemos à memória várias gerações de pessoas que se empenharam no inicio desta caminhada que este órgão de comunicação social foi fazendo ao longo dos tempos; as vicissitudes por que passaram tantos que procuraram fazer uma leitura dos acontecimentos e propor uma orientação sob o signo do humanismo cristão e de múltiplas pessoas que se enriqueceram com a leitura deste jornal.
Na verdade é o bem das pessoas que deve orientar a comunicação social. A verdade, o bem, a beleza e o respeito pela dignidade da pessoa humana terão forçosamente de emergir de toda a tarefa da comunicação social.
Celebrar cem anos remete-nos para o nascimento deste órgão de comunicação social em período conturbado da nossa história contemporânea. Mais ainda, na mesma época, marcada pelo secularismo agressivo e pelo materialismo militante, dá-se uma explosão de imprensa de cariz humanisco-cristã por todo o território nacional.
É nosso dever, hoje, de reconhecer como as gerações passadas souberam auscultar os sinais dos tempos e de maneira destímida e sábia procuraram responder a uma cultura que dava sinais de percorrer um itinerário que deformava o ser humano e criaria ruptura na sociedade de difícil previsão.
São estes homens valentes, de inteligência, de coração e de fé com horizontes rasgados para um futuro que depende do esforço e da coragem de nele intervir que nós hoje saudamos e agradecemos e nos inspiramos.
Cem anos durante os quais se assistiu a uma caminhada permanente da comunicação social e à atenção que a Igreja prestou a estes meios de comunicação entre as pessoas, povos e culturas.
É bem notória a importância dada no Concilio Vaticano II sobre esta matéria. No decreto Conciliar Inter Mirifica dedicado todo ele à comunicação social.
Inicia-se este documento por dizer «entre as maravilhosas invenções da técnica que, principalmente nos nossos dias, o engenho humano extraiu, com a ajuda de Deus, das coisas criadas, a santa Igreja acolhe e fomenta aquelas que dizem respeito, antes de mais, ao espírito humano e abriram novos caminhos para comunicar facilmente notícias, ideias e ordens». E, acrescenta «entre estes meios, salientam-se aqueles que, por sua natureza, podem atingir e mover não só cada um dos homens mas também as multidões e toda a sociedade humana, como a imprensa, o cinema, a rádio, a televisão e outros que, por isso mesmo, podem chamar-se, com toda a razão meios de comunicação social» (IM, 1).
Mais ainda, os Padres Conciliares reconhecem o dever de usar os meios de comunicação social em ordem à missão que a Igreja tem a desempenhar no meio da sociedade. Por isso, afirma que «A Igreja católica, fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo para levar a salvação a todos os homens, e por isso mesmo obrigada a evangelizar, considera seu dever pregar a mensagem de salvação, servindo-se dos meios de comunicação social, e ensina aos homens a usar rectamente estes meios» (IM, 3).
Apela, então ao direito em usar e possuir os meios necessários e adaptados para a obra evangelizadora. Neste sentido sublinha que «à Igreja, pois, compete o direito nativo de usar e de possuir toda a espécie destes meios, enquanto são necessários ou úteis à educação cristã e a toda a sua obra de salvação das almas; compete, porém, aos sagrados pastores o dever de instruir e de dirigir os fiéis de modo que estes, servindo-se dos ditos meios, alcancem a sua própria salvação e perfeição, assim como a de todo o género humano» (IM.3).
Verificamos esta exigência e extrema necessidade quando no mesmo texto conciliar se afirma que «procurem, de comum acordo, todos os filhos da Igreja que os meios de comunicação social se utilizem, sem demora e com o máximo empenho nas mais variadas formas de apostolado, tal como o exigem as realidades e as circunstâncias do nosso tempo, adiantando-se assim às más iniciativas, especialmente naquelas regiões em que o progresso moral e religioso reclama uma maior atenção» (IM. 13).
O Concilio Vaticano II é um marco importantíssimo no despertar da Igreja e da sociedade para a importância dos meios de comunicação social. Daí se seguiram outros documentos e o compromisso para em cada ano se celebrar o dia mundial das comunicações sociais para o qual o Santo Padre dedica um mensagem própria iluminando diversos aspectos a considerar no vasto mundo da comunicação social.
Em 1971, o Conselho Pontificio para as Comunicações Sociais publica uma Instrução Pastoral, correspondendo ao mandato do Concilio, na qual começa por afirmar que «a comunhão e o progresso da convivência humana são os fins primordiais da comunicação social e dos meios que emprega» (CP, 1); e ainda, sublinha que «Igreja encara estes meios de comunicação social como “dons de Deus”, na medida em que, segundo intenção providencial, criam laços de solidariedade entre os homens, pondo-se assim ao serviço da Sua vontade salvífica» (CP, 2).
Desenvolve, ao longo do texto, algumas das interpelações e desafios que se colocam à comunicação social. Diz-se que «o cristão, pela visão que tem da história, do homem e da solidariedade humana, não pode deixar de descobrir um significado, no empenho pelo melhoramento das condições de vida, bem como nas recentes descobertas científicas e sucessos da técnica» (CP, 7); e ainda, «pela sua própria natureza, a comunicação social contribui para que os homens, comunicando entre si, adquiram uma consciência mais profunda da vida comunitária» (CP, 8); a par com o bem comum a comunicação social deve «deve obedecer à lei fundamental da sinceridade, honestidade e verdade» (CP, 17); ao reunirem os homens do nosso temo, ao proporcionarem espaços de proximidade e comunhão são grandes as virtualidade em ordem à promoção do progresso humano.
Todos reconhecemos que os meios de comunicação social são uma espécie de praça pública onde «toda a pessoa tende a exprimir abertamente a sua opinião, sentimentos e emoções, para provocar ou partilhar de costumes e mentalidades comuns; daí nasce a “opinião pública”, propriedade característica da natureza social do homem» (CP, 25). Daí a exigência de que «a liberdade de expressão, dentro dos limites da moralidade e do bem comum, é um direito dos indivíduos e dos grupos» (CP, 26) à qual deve corresponder a responsabilidade dos comunicadores.
Por isso, «interpretando a responsabilidade que tem neste campo, a Igreja esforça-se por dar uma visão coerente, que concilie os princípios da fé com as leis particulares da comunicação social» (CP, 101).
Como sua tarefa imprescindível, «a Igreja confia que a sua acção espiritual contribua, em primeiro lugar, para que as leis elementares da comunicação social sejam respeitadas e guardadas mais claramente; em seguida, para que a dignidade do homem, tanto a do que comunica, como a do que recebe a comunicação, seja mais dignamente respeitada; finalmente, para que a comunicação desabroche em autêntica comunhão entre os homens» (CP102).
Proporcionando o diálogo entre a Igreja e o mundo, os meios de comunicação são necessários para propor o Evangelho, no respeito e na abertura perante a diversidade cultural e religiosa. Assim «a necessidade desta linha de conduta impõe-se pelo facto de o homem hodierno viver imerso nas ondas da comunicação social, que jogam um papel de primeira importância na formação das suas mais profundas convicções, mesmo religiosas» (CP, 127).
Porque estamos no centenário de um meio de comunicação impresso, realcemos um parágrafo que neste documento se refere à imprensa. Diz-se que «o papel da Imprensa católica é enfrentar, por meio de informações, comentários, debates, todos os problemas e interrogações do mundo em que vivemos, à luz dos princípios cristãos« (CP, 138).e, acrescenta que «também lhe compete comentar e, se necessário, corrigir notícias e comentários referentes à fé e vida da Igreja» (Ib.). Deste modo, «ela será ao mesmo tempo, um espelho em que se reflectem as imagens do mundo e uma luz que o ilumine. Deverá ser também o lugar de encontro e confronto de ideias e opiniões» (Ib.).
Fazendo referência a esta Instrução e dando-lhe uma adequação aos novos tempos, em 1991, o mesmo Conselho Pontificio publica uma Instrução a que denomina de Aetatis Novae.
Referindo-se à «aldeia global» e aos novos areópagos, começa por sublinhar que «ao aproximarmo-nos de uma nova época, dá-se uma considerável expansão nas comunicações, que influencia profundamente as culturas de todo o mundo». Mais ainda, «as revoluções tecnológicas representam apenas um aspecto deste fenómeno». Reconhece-se que «não existe lugar onde não seja sentido o impacto dos mass media no comportamento religioso e moral, nos sistemas políticos e sociais, e na educação» (AN, 1).
Perante a revolução tecnológica mais recentes que afectam a comunicação social, realça-se que «neste contexto, estimulamos os pastores e o povo de Deus a aprofundar o sentido de tudo o que diz respeito aos meios de comunicação, e a traduzi-lo em projectos concretos e realizáveis» (AN, 3).
Tendo em conta que «a mudança que se dá hoje nas comunicações implica, mais que uma simples revolução técnica, a transformação completa de tudo o que é necessário à humanidade para compreender o mundo que a envolve, e para verificar e expressar a percepção do mesmo», a Igreja sente-se interpelada a reconhecer que «tanto se pode recorrer aos mass media para proclamar o Evangelho, como para o afastar do coração do homem». Porque «a infiltração, cada vez mais estreita, dos mass media na vida quotidiana influencia o conceito que se possa ter do sentido da vida» (AN,4).
Daí a importância pastoral dos meios de comunicação social que começa por assumi-los como verdadeira cultura. A comunicação social, no contexto do digital, é uma cultura muito própria onde tudo se vive e partilha.
Daí a necessidade de estar de maneira crítica no ambiente e na cultura da comunicação. Di-lo este documento com as seguintes palavras: «se a Igreja adopta uma atitude positiva e aberta em relação aos meios de comunicação, procurando penetrar a nova cultura por eles criada a fim de a evangelizar, é necessário que ela proponha também uma avaliação crítica dos mass media e do seu impacto na cultura» (AN, 12).
É deste desafio critico e evangelizador, numa intenção de diálogo com a cultura e de valorização da comunicação social que ano após ano, o Santo Padre nos oferece uma mensagem por ocasião do dia mundial das comunicações sociais.
Todos nos lembramos que este ano o Papa Francisco nos exorta, a partir de uma frase de Isaias, com o lema «Não tenhas medo que eu estou contigo – comunicar esperança e confiança, no nosso tempo». Começa por afirmar que «graças ao progresso tecnológico, o acesso aos meios de comunicação possibilita a muitas pessoas ter conhecimento quase instantâneo das notícias e divulgá-las de forma capilar. Estas notícias podem ser boas ou más, verdadeiras ou falsas». Segundo as suas palavras o seu propósito é encorajar os comunicadores de modo a que «a todos quero exortar a uma comunicação construtiva, que, rejeitando os preconceitos contra o outro, promova uma cultura do encontro por meio da qual se possa aprender a olhar, com convicta confiança, a realidade».
Este itinerário serviu para realçar a importância que a Igreja atribui à comunicação social, do modo como acompanha a evolução da cultura comunicativa e como exorta a uma recta utilização destes meios.
Na realidade estamos em tempos novos com enormes desafios para a comunicação social e sobretudo para os tradicionais meios de comunicação.
As novas tecnologias de comunicação, as novas redes de comunicação, ou a comunicação em rede, o digital e as novas plataformas, provocam uma sabedoria e inteligência tal para adequar os novos meios aos tradicionais que nem sempre se torna possível.
Acresce que a par com a importância da comunicação escrita há uma nova geração que foi destituída da capacidade de reflexão e de espirito critico para comparar e aprofundar as diversas correntes de pensamento que só será possível através da imprensa.
A cultura da informação sem mais, do episódico e do técnico, da superficialidade e do descartável, não proporciona ambiente e gosto pelo aprofundamento e confronto do noticiado e das ideias devidamente desenvolvidas.
Se é verdade que os variados meios de comunicação social são complementares e se interligam para uma comunicação mais perfeita, também é verdade que a imprensa é a que mais sofre neste ajustamento.
Gostaria ainda de referir que estamos perante um órgão de comunicação social de proximidade e de relação com as comunidades de emigrantes. Um valor insubstituível no modelar de uma cultura própria e na promoção de uma coesão social comunitária impar, mas é a que mais sente os efeitos dos grandes grupos de comunicação social. Também aqui se ajusta o apelo a dar prioridade aos mais pequenos e aos simples.
A imprensa de inspiração cristã está perante desafios muito exigentes. A resposta não é desistir, muito pelo contrário, com inteligência e com sabedoria, com coragem e confiança abraçar o futuro, auscultando o que o Espirito nos diz a partir do interior da realidade onde somos chamados a mergulhar.
Parabens ao Dever e seus colaboradores, à direcção e demais jornalistas, ao publico e a todos os que nos deixaram este precioso legado. Que saibamos nós hoje renová-lo e dotá-lo de força evangelizadora para os nossos tempos.
+João Lavrador, Bispo de Angra e Ilhas dos Açores