São Jorge.

As Forças Armadas e a Igreja são searas de Valores em Portugal

 

  1. “Passava Jesus através das searas num dia de sábado e os discípulos apanhavam e comiam as espigas, debulhando-as com as mãos.” (Lc 6, 1)

Que pórtico maravilhoso nos oferece o evangelho de hoje para entrar na celebração deste dia, consagrado ao Estado-Maior General das Forças Armadas! Nesta pérola evangélica, somos convidados a ver o mundo como um imenso campo de searas, disponível às sociedades por forma a obterem o alimento que sacia as muitas fomes que o ser humano de todos os tempos desenvolve.

De entre as searas que florescem no campo da Pátria, estão as Forças Armadas. As belas espigas maduras que produzem são os Valores e os princípios, as ações e o caráter que nutrem e iluminam a vida de quem a constrói e defende, proporcionando aos cidadãos liberdade e justiça, fraternidade e segurança e garantindo a força da autodeterminação do país.

  1. Por isso, não deixa de ser curioso o pormenor evangélico de referir como os fariseus contestavam o gesto dos discípulos de apanharem e comerem as espigas, para saciarem a fome, por não ocorrer no dia certo, nem no momento oportuno, pois era sábado, o dia sagrado dos judeus (cf Lc 6, 2). Esta anotação recorda-nos como também ainda hoje há quem, como os fariseus, faça apelo à sacralidade de determinados preconceitos ideológicos para estabelecer muros entre as Forças Armadas e a sociedade. Muros que acabam por prejudicar a própria sociedade, particularmente os jovens, uma vez que, vigorando a cultura do relativismo, ético, histórico, e até patriótico, seria importante que chegasse a essa mesma cultura, os padrões determinantes das Forças Armadas, que fizeram da Marinha, do Exército e da Força Aérea um dos fatores mais relevantes dos avanços civilizacionais na afirmação da Paz, da dignidade de cada ser humano como pessoa, da Liberdade e da Justiça como critério fundamental para as relações sociais. Como no passado, também hoje, são determinantes para a prevalência do Bem Comum, face aos bens individuais, particulares e, por vezes, egoístas.
  2. Assumindo, então, que os valores militares são como grãos de trigo que produzem o pão da Ética, quero pôr em relevo três instâncias de referência:

Primeiro, com São Jorge, padroeiro do Estado Maior General das Forças Armadas, nome desta Ilha açoriana e orago da Igreja onde nos encontramos. Nascido na Capadócia, São Jorge foi oficial do exército romano, tendo sido martirizado no ano de 303. De todos os acontecimentos da sua vida, o mais famoso chegou até nós por meio da narrativa lendária segundo a qual São Jorge, protegido pela Cruz, mata o dragão que devorava pessoas.

É um episódio com uma forte carga simbólica que nos comunica a mensagem de que a fé e a verdade têm, nos desígnios de Deus, triunfo garantido sobre o mal e sobre a mentira. O mal que, definitivamente, é o verdadeiro inimigo que urge combater, pode assumir configurações várias como a opressão, a injustiça, a exploração do homem pelo homem… São Jorge não só nos recorda qual a real ameaça para o ser humano, mas também nos desafia a combatê-la. Como justamente sublinhou Hannah Arendt, uma das mais prestigiadas filósofas do século XX, nenhum retrocesso é tão dramático como o da banalização do mal; quando tal sucede, torna-se evidente que a sociedade está doente. Neste contexto, emerge toda a relevância das Forças Armadas enquanto instância de afirmação e salvaguarda do Bem e suas configurações. Sob a coordenação do Estado Maior General das Forças Armadas, assiste à Marinha, ao Exército e à Força Aérea a tríplice missão de, primeiro, conservar íntegra a consciência do bem e do mal; segundo, defender e promover tudo quanto favoreça o desenvolvimento integral do ser humano, como a paz, a identidade da pátria, a autodeterminação nacional e o sentido da memória; e, terceiro, lutar contra todas as formas de atropelo à dignidade humana.

 

  1. A segunda instância que nos inspira é São Nuno de Santa Maria, patrono do Estado Maior General das Forças Armadas, Condestável do Reino, o qual permaneceu até hoje a referência incontestável de todo o soldado português. A sua atualidade é realmente desconcertante e manifesta-se com admirável esplendor nestes conturbados tempos que estamos a viver. Como recordava o Papa Bento XVI, na ocasião da canonização, nem mesmo nos campos de batalha Nun’Álvares abdicava dos propósitos da santidade. Também não era a guerra que o demovia de agir e cultivar os mais elevados valores e ideais morais. Nada o dissuadia da heroica postura de respeitar sempre, e em cada circunstância, cada ser humano. Mesmo no meio dos mais densos combates e participando nas mais sangrentas lutas, jamais ele deixava de respeitar a dignidade de cada um, fosse seu soldado, seu camarada ou seu inimigo. Esta herança tem sido transmitida às sucessivas gerações de Militares portugueses e, por isso, está presente em todas instâncias das Forças Armadas. Mas hoje recordamos que o seu guardião por excelência é o Estado-Maior General das Forças Armadas, direto sucessor da mística de Nun’Álvares Pereira.

Também o evangelho de hoje nos remete para a afirmação do primado do ser humano e do caráter sagrado da sua condição (cf Lc 6, 5). De facto, se para a mentalidade judaica a observância do sábado se sobrepunha a qualquer outra conjuntura ou circunstância, mesmo se em questão estava a vida do ser humano, Jesus vem simplesmente relativizar todas as prescrições, afirmando o primado da pessoa e tudo colocando ao serviço da sua vida e dignidade. Por isso diz que «o sábado é para o Homem e não o homem para o sábado». Ou seja, a afirmação do respeito para com todos e a defesa do caráter inviolável da pessoa devem ocorrer e verificar-se em todas circunstâncias. Jamais o ser humano pode ser tratado como meio, será sempre um fim em si mesmo. Se os discípulos saciaram a sua fome biológica com as espigas maduras da seara pela qual passavam, as mulheres e homens de hoje podem colmatar o abismo da crise humanista no manancial de valores que são promovidos e acarinhados no âmbito das Forças Armadas.

Hoje, esta abordagem reveste-se de carater profético, uma vez que contrasta com o que se está a verificar nalgumas partes do mundo, nomeadamente em países como na martirizada Ucrânia.

Por isso, elevamos o nosso olhar para as Forças Armadas Portuguesas e constatamos, orgulhosos, quão viva está, nas suas fileiras, a consciência do caráter inviolável da pessoa. A sua afirmação e efetivação mobilizam os Militares ao sacrifício de si mesmos, até ao ponto de derramarem o próprio sangue. Não estamos a referir-nos a uma utopia, mas a algo de real, prático, existencial que se fez história na dádiva daquelas e daqueles que, no campo da honra, ofereceram a vida pela Pátria, e a quem hoje homenageamos e por quem rezamos.

  1. O terceiro horizonte de referência é suscitado pelas palavras de São Paulo que, ao perguntar, “Que possuis que não tenhas recebido?”, nos remete para a contemplação da Pátria amada, esse excelso dom de Deus recebido pelos portugueses. E se todos são chamados à responsabilidade pela sua defesa e construção, às Forças Armadas incumbe a missão de garantir a sua soberania e autodeterminação.

Nessa medida, somos convocados por uma voz que nos chama a revisitar o nosso glorioso Hino Nacional. E é aí que descobrimos, maravilhados, que a expressão com que inicia e, ao mesmo tempo, se revela o suporte de toda a «Nação Valente» e do «nobre povo» é precisamente «Heróis do Mar».

Se estivéssemos na presença de uma construção, deveríamos olhar para essa expressão de abertura como sendo a sua base, sobre a qual tudo assenta. Contemplando Portugal — que é, ao mesmo tempo, um dom de Deus, cujas chagas do divino Filho estão evocadas nas cinco quinas, e uma dedicada Obra dos portugueses —, encontramos, nos seus fundamentos, esses «Heróis». E quem são esses heróis, sustentáculo da Nação Valente e do nobre povo, que aceitam fazer parte da sua construção permanente? São aqueles que, na pena de Camões, «não lhes falta – conforme diz no Canto X, estância 154 e 155, – na vida honesto estudo, com longa experiência misturado, nem engenho que aqui vereis presente… Para servir-vos, braço às armas feito»: eis o retrato do soldado.

E hoje:

Portugal e o mundo, têm vivido tempos de enorme complexidade e conhecido circunstâncias nada favoráveis. Ninguém fica indiferente às sucessivas crises que assolam as sociedades e os países: foi a crise pandémica, gerada pela SARS COV 19, sucedeu-se a crise civilizacional com a invasão da Ucrânia pela Rússia, estamos a entrar numa crise económica e social e, em Portugal, a enriquecer esse já de por si dramático cenário, estamos a ter um verão mergulhado na trágica crise dos incêndios.

Na moldura de tão desoladora paisagem, eis emergir um oásis de vida e de esperança que, como seara de trigo, ampara as pessoas, defendendo-as de cair no abismo do desespero, e transmitindo-lhes força, resiliência e, pela graça de Deus, afirmando-se como instrumento de paz e de salvação para tantas populações e povos. Nestes últimos tempos, o Estado Maior General das Forças Armadas, sabiamente chefiado pelo seu Excelentíssimo Chefe, tem tido a sabedoria e a capacidade de fazer das Forças Armadas de Portugal uma fonte de esperança para os portugueses: não apenas porque, em adversos terrenos internacionais,  implementam a paz e garantem a segurança de povos e nações, mas, sobretudo, porque em solo pátrio a Marinha, o Exército e a Força Aérea estão na primeira linha a combater as mais devastadoras adversidades; e essa presença e essa ação transmite confiança aos cidadãos, dão-lhes razões de esperança, restituem-lhes o sentido de cidadania e patriotismo.

Caros irmãos, se hoje os adversários de Portugal e dos portugueses são as diferentes crises, desde a sanitária-pandémica, à social e económica, pelo abrupto aumento do preço dos bens essenciais, passando pela civilizacional causada guerra… há, contudo, um grande inimigo do nosso povo: é o desespero; é a desilusão, é o medo. E verificamos, com alegria e agradecendo a Deus, que como outrora, as Forças Armadas se bateram pela autodeterminação de Portugal, se empenharam para que Portugal desse novos mundos ao mundo, lutaram pela implementação da liberdade… hoje, as mesmas Forças Armadas, quando socorrem populações, quando se envolvem no combate à pandemia, quando se fazem presentes nos abalos das comunidades, quando estão empenhadas na prevenção e vigilância aos incêndios florestais, quando abraçam a causa da vida e dos problemas dos portugueses: estão a combater o inimigo do desespero, estão a instaurar a esperança, estão a restituir força e vida.

São Paulo, refere-se aos arautos do Mundo Novo em termos que hoje quero aplicar aos nossos Militares, eles que, pelo que fazem e dão, são as espigas que sustentam a quem, na vida, está em caminho e luta para que o mundo e a humanidade nunca deixem de ser uma seara de férteis trigais; cito:

“Ainda agora, suportamos a fome e a sede, andamos malvestidos, somos maltratados, não temos morada certa e cansamo-nos a trabalhar com as próprias mãos. Insultam-nos e nós abençoamos; perseguem-nos e suportamos; somos difamados e respondemos com bondade.” 1cor 4, 11-13)

A força e a grandeza desta mística, materializada no espírito de abnegação das nossas Forças Armadas, possui no EMGFA o primeiro dos seus protagonistas e principal linha da sua salvaguarda.

 

São Jorge e São Nuno de Santa Maria, protegei Portugal e as suas Forças Armadas! Amen!

 

+Rui Valério

Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança