Sé. Angra.
Em vésperas de Natal estamos diante do presépio, das figuras de José e de Maria, com a coroa do Advento ao centro toda iluminada. Como eles esperavam o nascimento do seu Filho cheios de expectativas, sem certezas, sem saberem tudo o que iria acontecer, assim nós O esperamos, sabendo que Jesus é sempre o mesmo «ontem, hoje e por toda a eternidade», como dizem as escrituras.
No evangelho de Lucas a anunciação é feita a Maria, enquanto no de Mateus, o anjo fala a José. Pelos dois narradores vemos que o anúncio é dirigido ao casal, ao homem e à mulher juntos, à família, pois uma gravidez, o nascimento de um filho, a sua educação e crescimento não é uma questão particular apenas da conta da mãe, mas uma responsabilidade dos dois, mesmo que um dia se separem. É assim que os evangelistas se completam.
Vemos ainda que, quer no caso de Maria, quer no caso de José, não é na igreja, no templo ou na sinagoga que Deus lhes fala mas nas suas próprias casas. Isto não quer dizer que Deus não nos fala na Igreja, mas que é sobretudo em casa, do dia-a-dia, que devemos cuidar da nossa vida interior, da escuta e do sonho, da nossa humanidade e da dos outros que nessa casa vivem. É aí que Deus põe ao nosso lado pessoas boas, belas e fortes que nos podem abrigar e amparar, e por vezes, trocam-se os papéis e nós é que somos fortes e temos de cuidar da humanidade daqueles que de nós precisam.
Ora «Maria encontrara-se grávida». Uma surpresa absoluta. Algo que despedaça o coração de José que como «não queria difamá-la, resolveu repudiá-la em segredo». Insatisfeito com a sua decisão porque a amava, tem-na presente até nos seus sonhos, como um enamorado. Nem de noite o seu coração descansava e acordava sempre a pensar nela e na situação que os envolvia.
Na cultura judaica, o casamento começava com o noivado. Com ele os jovens ficavam solenemente comprometidos, embora continuassem a viver por algum tempo com os respectivos pais. Estavam pedidos como se dizia entre nós. Era nesta fase que se encontrava Maria e José, quando este se apercebe que ela estava grávida. Segundo o costume se tal acontecesse ele devia denunciá-la, expondo-a assim a uma possível morte por apedrejamento. No entanto José não só decide agir de outra maneira, como se deixa interpelar pelos sinais de Deus.
O dilema era continuar com ela grávida – o que era difícil de aceitar ou deixá-la, o que também não lhe caía bem na consciência. Tal como o outro José do livro do Êxodo que outrora fora levado para o Egipto, também deste José se pode dizer que «vem aí o homem dos sonhos» e dos projetos, com as mãos endurecidas pelo trabalho e o coração enternecido por um lado e ferido por outro.
No evangelho José nunca fala, mas sabe escutar o profundo do seu ser, os sonhos que o habitam e a vontade de Deus. É então quando ouve: «Não temas tomar Maria, tua esposa». A mesma palavra que Maria tinha ouvido do anjo na anunciação. A ambos é dito, em tempos diferentes, mas pelo mesmo motivo «não temas», porque Deus quando vem não é para meter medo, mas para inspirar confiança. Por isso é que o medo é contrário à fé, à paternidade e ao futuro. Com José aprendemos a escutar não os medos, mas os sonhos e os projetos.
Passada esta difícil etapa, José toma consigo Maria e o Menino e torna-se verdadeiro pai de Jesus, embora não sendo o seu progenitor. Até porque esse não é o problema, gerar um filho é fácil, mas ser seu pai e sua mãe, amá-lo, criá-lo, faze-lo feliz, ensinar-lhe um ofício, acompanha-lo, é uma aventura completamente diferente, complexa, laboriosa e exigente. Aliás, os pais e as mães vão-se fazendo à medida que os filhos crescem, não estando completamente prontos quando eles nascem.
A decisão que José retira do sonho é preferir o amor a Maria e a Deus do que ao seu amor-próprio. Ele não se pôs em primeiro lugar para ficar bem visto socialmente, mas arriscou o seu próprio bom nome para dar um nome bom ao Menino, na proteção, companhia e fidelidade à sua esposa em tudo o que viesse acontecer. Trata-se de um amor incondicional. É essa a força e a grandeza de José. Prefere proteger o Menino e a Mãe, sacrificando-se ele mesmo a não sacrificar outros, dizendo-nos que é possível amar os outros mais que a nós próprios. Por amor a Maria José alarga o espaço de seu coração e acolhe o filho que sabe que biologicamente não é seu.
A visão profética e espiritual deste acontecimento é vista assim por «Paulo, servo e apóstolo para o Evangelho que Deus tinha prometido acerca de seu Filho, nascido, segundo a carne, da descendência de David, mas, segundo o Espírito que santifica, constituído Filho de Deus em todo o seu poder pela sua ressurreição de entre os mortos», ouvimos na segunda leitura. De facto, é por via de José, que se cumprem as profecias que o Messias havia de vir da descendência de David.
E continua o sonho: «Ela dará à luz um filho e tu pôr-lhe-ás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados». O próprio nome de Jesus tem raiz num verbo hebraico que significa alargar, acrescentar, expandir o espaço de uma humanidade para a tornar maior. Pelo contrário, o pecado é aquilo que fecha a alma, que a torna pequena, mesquinha, que a atrofia, que reduz a humanidade, sem capacidade de amar.
Este último domingo do advento ajuda-nos a entrar no mistério do Natal. Acabamos de ver que a encarnação é obra de Deus, do seu Espírito que santifica, e obra humana que dá física e materialmente o que é e o que tem. É muito sugestiva a oração que faz a ponte entre a liturgia da palavra de hoje a liturgia eucarística, pedindo ao Senhor que «aceite os dons que trazemos ao vosso altar e os santifique com o mesmo Espírito que, pelo poder da sua graça, fecundou o seio da Virgem santa Maria». Se no presépio o Emanuel é o Deus connosco, também o é decerto na Eucaristia.
Se aceitamos que o Espírito Santo que fecundou o seio da Virgem Maria é o mesmo que fecunda as nossas vidas, sobretudo pelos sacramentos, então devemos assumir que nos abrimos e damos toda a colaboração humana ao Espírito de Deus que nos quer encher da sua graça, como Maria, José, para que também nós, relativizando os aspectos desfocados, superficiais ou interesseiros do natal, não desistamos e colaboremos pessoalmente no nascimento de Jesus neste mundo concreto em que vivemos.
Hélder, Administrador Diocesano de Angra