Sé. Angra.
«Nos ritmos e nas vicissitudes do tempo recordamos e vivemos os mistérios da salvação. Em cada domingo, Páscoa semanal, a santa Igreja torna presente este grande acontecimento no qual Jesus Cristo venceu o pecado e a morte. Da Páscoa derivam todos os dias santos: o primeiro Domingo do Advento, a 27 de Novembro (…). A Cristo, que era, que é e que há-de vir, Senhor do tempo e da história, louvor e glória pelos séculos dos séculos». Foi nestes termos que anunciamos, em Janeiro passado, a Páscoa e por ela o primeiro domingo do novo ano litúrgico e do Advento que é hoje.
Nos dias de Noé os homens «comiam e bebiam, casavam e davam em casamento.» Mas que mal faziam eles? Podemos perguntar hoje. Estavam apenas empenhados em viver. Jesus relativamente a eles não fala de pecados ou de injustiças, mas de algo demasiado quotidiano e doméstico; não fala de vícios nem de excessos, mas de uma vida sem profundidade, quando comer é mais do que mastigar, beber e mais que engolir, e casar é mais que ter relações conjugais.
Esses dias de Noé são os meus dias, em que me interesso apenas pela lista básica das minhas necessidades e já não sei sonhar, escutar, contemplar, esperar; quando esqueço que o segredo da minha vida me ultrapassa, quando aplaco a fome do céu com pequenos pedaços de terra. Além disso «comiam e bebiam, mas o que era mais grave, é que não deram por nada». É possível viver «sem dar por nada», sem saber porquê e sobretudo para quem.
O tempo de advento é precisamente um tempo para darmos conta de (…), para nos apercebermos, para sairmos da superficialidade; tempo da atenção, que quer dizer, de tornar profundo, denso cada momento, cada rosto. O rosto encarnado de Jesus de Nazaré, no presépio, na Cruz e no altar da Eucaristia.
O rosto das crianças vítimas da fome, do abandono, da violência, dos abusos; o rosto das mulheres vitimas da violência e do machismo, usadas ou abusadas; o rosto dos que buscam uma sobrevivência digna, com abrigo, com trabalho e com teto; o rosto dos trabalhadores precários e dos jovens que procuram emprego; o rosto dos doentes, dos presos e dos idosos que facilmente são descartáveis; o rosto dos que perderam a esperança a quem o futuro foi hipotecado ou roubado; os que vemos, ouvimos e lemos as ameaças da destruição do nosso planeta e não damos por nada.
Para quem vive neste estado precisa de um advento, de uma esperança que não engane, de um futuro que é em Deus. Se não vamos ao encontro d’Ele é Ele que vem ao nosso encontro. Não podemos é «não dar por nada».
A Palavra de Deus diz-nos hoje: «Andemos dignamente, como em pleno dia, evitando comezainas e excessos de bebida, as devassidões e libertinagens, as discórdias e os ciúmes; não vos preocupeis com a natureza carnal, para satisfazer os seus apetites, mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo».
Para o Papa Francisco, precisamos estar vigilantes para não arrastar os nossos dias para o hábito, para não nos fazer ficar pesados pelas preocupações da vida. Hoje é uma boa oportunidade para nos perguntarmos: o que pesa no meu espírito? O que me faz acomodar na poltrona da preguiça? Quais são as mediocridades que me paralisam, os vícios que me esmagam até ao chão e me impedem de levantar a cabeça? E com relação aos fardos que pesam sobre os ombros dos irmãos, estou atento ou indiferente?
Pelas palavras de Cristo, vemos que a vigilância está ligada à atenção, ao cuidado, não se distraiam, ou seja, fiquem acordados! Vigiar significa não permitir que o coração se torne preguiçoso e que a vida espiritual se enfraqueça na mediocridade. Ter cuidado porque se pode ficar adormecidos, sem impulso espiritual, sem ardor na oração, sem entusiasmo pela missão, sem paixão pelo Evangelho. E isto leva a “adormecer”: a continuar com as coisas por inércia, a cair na apatia, indiferentes a tudo, excepto ao que nos convém.
O evangelho não é uma ameaça, nem Jesus um ladrão, mas aponta duas maneiras diferentes de viver: na alienação e na atenção, na escuta e na contemplação: de quem vive debruçado sobre o infinito e sobre o mundo concreto e de quem vive fechado na sua pele, em si e para si; de quem é generoso com os outros em termos de pão e de amor e de quem está inclinado sobre o seu prato e o seu telemóvel.
Entre estes dois estilos de vida, só um está preparado para o encontro com o Senhor; o outro não se apercebe de nada; um vive da maneira adulta, o outro vive de maneira pueril, distraído nos seus jogos, para todas as idades. O Evangelho não fala de um ladrão que nos vem roubar a vida, nem de um vulcão iminente, mas de uma surpresa, de um encontro imprevisto, inesperado, da irrupção de Deus, na minha história, que com Ele é uma história que tem salvação.
Por isso devemos estar interiormente no mínimo em estado de alerta, se necessário em estado de contingência e em alguns casos mesmo em estado de calamidade. Cada um veja em que estado ou nível se coloca neste tempo do advento e que tome as medidas adequadas à protecção do nosso bem-estar, quer dizer à protecção do bem ser.
O Senhor Jesus não vem para nos tirar ou roubar nada; vem sem nada para nos dar tudo; mas primeiro temos de nos esvaziar de coisas fúteis e inúteis, de coisas que não saciam, de vaidades no sentido de vanidades, de tal modo que quando Ele vier encontre estalagem para nascer, crescer e habitar. Então quando Ele entrar a minha vida muda, o olhar, o sentido, os rostos, os horizontes, a força e alegria.
Voltando à Palavra de Deus deste dia ouvimos: «Vós sabeis em que tempo estamos: Chegou a hora de nos levantarmos do sono, porque a salvação está agora mais perto de nós do que quando abraçámos a fé. A noite vai adiantada e o dia está próximo. Abandonemos as obras das trevas e revistamo-nos das armas da luz».
A luz é a nossa arma. A luminosidade de um olhar é uma arma fortíssima, porque projecta luz, franqueza e confiança, para dentro e para fora. Os nossos olhos não só vêem a luz, como são fonte dela; há olhares que espalham luz à sua volta como uma candeia, tal como afirma o livro dos provérbios «Um olhar luminoso alegra o coração» (Prov. 15, 30).
Não é por acaso que no cancioneiro regional açoriano, em Olhos Negros a gente canta: «Os teus olhos são brilhantes, semelhantes aos luzeiros que o céu tem», ou seja, não somos apenas consumidores de luz, mas seus produtores e projectores, quando «abandonamos as obras das trevas e nos revestimos das armas da luz».
Ao celebrarmos a Eucaristia, temos consciência de que ela nos oferece já o penhor da nossa salvação. De facto, a salvação está agora mais perto de nós, assim o desejemos, pois, «agora e em todos os tempos, Cristo vem ao nosso encontro, presente em cada pessoa humana, para que o acolhamos na fé e o testemunhemos na caridade, enquanto esperamos a feliz realização do seu reino». Assim seja.
Hélder, Administrador Diocesano de Angra