Ribeirinha. Terceira.
Estamos hoje em comunhão dos santos, evocando Santo Amaro, um homem nascido em Roma, que terá morrido por volta do ano 584, ingresso na ordem beneditina, e que terá sucedido São Bento no governo da mesma. O seu culto chegou até nós, praticamente logo após o povoamento destas ilhas, no século XVI. Como todos chegavam pelo mar, o seu culto entra na ilha Terceira por um local conhecida por rocha da ponta ruiva, onde estamos agora, testemunhado por inúmeras gerações que nos procederam e que até aqui peregrinaram, a cada dia 15 de janeiro, em quase cinco séculos da nossa história de salvação.
Não estamos aqui sozinhos à volta desta figura e da sua causa, pois connosco estão os nossos concidadãos de Santo Amaro, no concelho das Velas na Ilha de São Jorge, de Santo Amaro no concelho de São Roque na ilho do Pico, na sua ermida em Santa Cruz da ilha Graciosa, em Vila Franca do Campo na ilha de São Miguel, em Almagreira na ilha de Santa Maria, na Conceição da Horta, na ilha do Faial, em Ponta Delgada na ilha das Flores e ainda na paroquial da ilha do Corvo, terra onde não há ermidas pelo facto da própria ilha ser uma ermida a céu aberto.
A maneira como os nossos antepassados expressaram a sua devoção foi pela construção de uma ermida. A ermida vem do termo ermita, como foi Santo Amaro, que queria sair do barulho para rezar, para se encontrar de verdade no silêncio com Deus, consigo próprio e com os irmãos da ordem, cuidando primeiro da vida espiritual e da vida material no que era estritamente necessário. Se tivermos em conta que a freguesia da Ribeirinha não nasce a partir do mar, mas pela serra, de onde se encontrava água com abundância para se poder viver, esta será uma construção ermita no verdadeiro sentido do termo, uma vez que é construída no extremo da origem ou do centro da freguesia.
A ermida é um templo de pequena dimensão, uma das mais antigas manifestações materiais da religiosidade católica açoriana. Geralmente submetidas a uma igreja paroquial, podem ter múltiplas utilidades, funcionando como locais de oração, centros dinamizadores de romarias ou como locais de celebrações. Arquitetonicamente, as ermidas têm uma estrutura simples: com dimensões reduzidas, uma única nave, só com um altar, sem batistério e sem capelas. Na sua maioria, as ermidas eram edificadas em zonas isoladas e distantes dos principais povoados, embora nos nossos dias se encontrem dentro das áreas de povoamento. As longas deslocações a pé que o quotidiano insular impunha, fazia com que funcionassem como lugares de proteção e de descanso.
Se atendermos a uma antiga oração da hora das vésperas da solenidade da Epifania do Senhor, que celebramos no passado dia 2, diz-se – «recordamos neste dia três mistérios: hoje a estrela guiou os Magos ao presépio; hoje, nas bodas de Caná, a água foi mudada em vinho; hoje, no rio Jordão, Cristo quis ser batizado para nos salvar».
Ora é neste sentido que Jesus nos manifesta que Deus tem um coração de ouro. Este foi o primeiro milagre que Jesus fez, manifestando a sua glória e assim cresceu a fé dos discípulos. Jesus dá sinais do amor de Deus em situações difíceis, em momentos de apuro. Ele mostra um Deus sensível e atento às nossas necessidades, a quanto afeta a nossa vida e felicidade. Jesus converte em vinho sete vasilhascheias de água. Fá-lo com generosidade, para que não falte nem a alegria, nem a amizade, nem a felicidade, nem a festa.
Não esqueçamos, tal como refletíamos ontem, que os milagres são sinais da ação de Deus, do amor de Deus, mas necessitam o suporte da nossa atenção, da nossa ação, da nossa vida, da nossa disponibilidade. Maria pôs-se à disposição de Deus e por sua vez diz aos serventes, «fazei o que Jesus vos disser». Estes, por sua vez, puseram-se às ordens de Jesus e água converteu-se em vinho. A lição é que se nos colocamos à disposição de Deus e da sua graça, podemos descobri-Lo em todos os momentos da nossa vida e admirar as maravilhas que faz em nós e por nós.
A Palavra de Deus hoje leva-nos a perguntar: Podemos ver a ação de Deus na nossa vida? Estamos à disposição de Deus como Maria e os serventes das mesas? Como respondemos às suas inspirações? Somos sensíveis às necessidades e aos desejos dos outros, como foi Jesus, Maria e os serventes? É certo que o vinho não é um bem de primeira necessidade como é o pão. Mas não devemos sair daqui sem o compromisso de trabalhar para que da nossa parte não falte a ninguém o vinho do amor, da amizade, da ternura, da não indiferença, da amabilidade, da atenção ao outro, da alegria, da cordialidade, da afabilidade. O milagre é apenas um sinal, pois para «um bom entendedor, meia palavra basta».
Para aqueles que já celebraram o sacramento do matrimónio ou para os que o vão fazer, é recorrente ouvirmos esta passagem do evangelho de hoje. A resposta de Cristo ao convite dos noivos a ir a este casamento, expressa já o seu «sim» ao amor, à família, à festa, à alegria e ao prazer. Oxalá que os casados de hoje, vendo que o vinho do amor, da paixão ou da ilusão da juventude se está a acabar, possam recorrer a Jesus para que Ele transforme a sua vida num vinho melhor, tal como acontece numas bodas de prata ou de ouro, onde o vinho do casamento já se acabou, mas o vinho mais antigo será do melhor, pois o quanto mais velho é mais caro se torna.
A presença de Jesus, quando aceite, pode transformar uma pessoa, um casal, uma família. Esta passagem do evangelho faz-me lembrar um homem desta ilha que andou muitos anos longe de Deus e em caminhos de dependência e degradação. Até que um dia se encontrou com Cristo, reconheceu os seus limites e pecados, pôs em ordem a própria vida e casou. Um dia pediram-lhe um testemunho da sua fé e ele disse: «Ora, eu não tenho estudos para falar; sei que Cristo transformou a água em vinho; eu até me encontrar com Ele era alcoólico e levava uma vida desgraçada. O milagre que aconteceu na minha vida foi ao contrário daquele que o evangelho diz. Quando Cristo entrou na minha vida então eu transformei o vinho em água. Hoje tenho saúde e sou feliz com a minha mulher, graças a Deus». De fato, transformar o vinho em água pode também ser um sinal para recuperar a saúde, a alegria e o bem-estar, uma vez que o bem-estar é antes de mais um bem ser. Daqui o fruto do Espírito Santo que é temperança.
No prefácio da grande obra que é o mistério da eucaristia rezamos: «Jesus na sua vida mortalpassou fazendo o bem e socorrendo todos os que eram prisioneiros do mal. Ainda hoje, como bom samaritano, vem ao encontro de todos os homens atribulados no corpo ou no espírito e derrama sobre as suas feridas o óleo da consolação e o vinho da esperança. Por este dom da vossa graça, também a noite da dor se abre à luz pascal do vosso Filho crucificado e ressuscitado. Por isso, com os Anjos e os Santos, proclamamos a vossa glória».
Hélder Fonseca Mendes, Administrador Diocesano de Angra