Angra do Heroísmo | 23 de fevereiro de 2023 [PDF]
Cada ano é assim. Chega a Quaresma, esse tempo especial de 40 dias, um número que indica um “tempo significativo” como o foram os 40 dias de Noé na arca, os 40 anos de Moisés no deserto a conduzir o Povo de Israel, ou os 40 dias de Jesus no deserto a preparar-se para a missão de Messias de Deus. Em todos esses períodos Deus esteve com o Seu povo, cuidou dele com amor de mãe e firmou ou renovou a promessa de que não o abandonaria, mas lhe daria um novo futuro. Em todos estes “tempos significativos” houve purificação e mudança.
Serve-me de orientação para esta Mensagem a passagem do Evangelista Mateus que, no capítulo 25, fala do Juízo Final e das suas perguntas: se demos de comer a quem tinham fome, de beber a quem tinham sede, etc. porque a Ele o fizemos ou deixámos de fazer. Adapto duas destas perguntas para falar de dois temas: a casa e os abusos.
1- … Eu (Jesus) não tinha casa e deste-me abrigo; Eu (Jesus) não tinha pão e deste-me de comer! (Cf. Mt. 25, 35)
Com o início da Quaresma, partem os romeiros à volta da Ilha de S. Miguel e, embora com menor expressão, também à volta das ilhas Terceira, S. Jorge e Graciosa”. Chama a atenção o que se passa nos lugares de pernoita: são acolhidos em casas de particulares que também lhes colocam comida sobre a mesa. Recompõem forças e continuam a romaria. Os romeiros só veem o caminho, não se fixam nas dificuldades porque sabem que o Senhor que caminha no meio deles providenciará o essencial através das mãos caritativas de outros irmãos. Como recompensa, os donos da casa só esperam uma oração, como paga. Também eles sabem que a melhor recompensa virá das mãos de Deus, porque, nesta troca de dons, se fortalece o coração e a vida ressuscita.
Estes “ranchos” somos nós e toda a humanidade ferida pelo pecado e a precisar de experimentar a misericórdia de Deus ao longo da estrada por onde a vida o leva. Uma humanidade, este ano ferida pela ideia da “casa”! Quantos sofrem por não terem casa ou a verem ameaçada! São as casas destruídas pelas bombas na guerra na Ucrânia ou pelos terramotos na Turquia e Síria, ambos a deixaram milhões de irmãos nossos sem casa nem pão. São os aumentos de juros e o agravamento das prestações que ameaçam a insolvência de muitas das nossas famílias e até a eventualidade de terem de entregar as casas ao banco. Mobilizam-se os governantes nacionais e Regionais em busca das melhores políticas para apoiar as famílias em risco de perder a casa por falta de recursos suficientes para a prestação e para o pão. Basta?
1.1 comunidades cristãs que sejam casa
A Quaresma inicia com desejos de conversão pela penitência e mais oração, de solidariedade que leve à partilha de bens e ajuda concreta ao próximo, e de um jejum praticado com a finalidade de melhorar a qualidade de outras vidas.
O Papa Francisco escreveu uma Mensagem para este ano inspirada num grande momento da vida de Jesus: a subida com os amigos Pedro, Tiago e João ao Monte Tabor onde montaram a tenda, qual casa que Pedro não mais queria deixar pois, ali com Cristo, presenciaram a Sua Transfiguração. Neste tempo, Jesus quer levar-nos consigo e conduzir-nos a um lugar à parte, fazer-nos subir mais alto e ir mais longe para que algo mude em nós e à nossa volta.
Atrevo-me a convidar cada cristão da nossa diocese e em especial as famílias a uma experiência de caminho, mesmo se de carro: subir a um monte ou lugar mais difícil, e, no meio da natureza, “lerem contemplativamente as belezas da criação”. Podem também ler em conjunto uma passagem da Escritura. Que bela ocasião para se interrogarem sobre a qualidade do amor no ambiente familiar e o grau de fidelidade aos compromissos pessoais, familiares e profissionais. Seria uma bela oportunidade para se ouvirem uns aos outros e, juntos, ouvirem o que Deus lhes pede.
Diz o Papa: “é preciso deixar-se conduzir por Ele, rompendo com a mediocridade e as vaidades. É preciso pôr-se a caminho, um caminho em subida, que requer esforço, sacrifício e concentração, como uma excursão na montanha”. Tal como a subida ao monte Tabor, percorrer um caminho juntos é cansativo e pode levar ao desânimo, mas “aquilo que nos espera no final é algo, sem dúvida, maravilhoso e surpreendente, que nos ajudará a compreender melhor a vontade de Deus e a nossa missão ao serviço do Reino”.
Este tempo propício à subida ao Monte com Jesus traz desafios a todo o povo de Deus, que somos nós inseridos numa família, num grupo, numa comunidade eclesial e, em concreto, numa paróquia. Caminhar juntos, com Jesus entre nós, significa estar atento a quem vai ao lado, a não o deixar caído nem só, a entender os seus gritos, a procurar ser “casa” para ele.
Mas “ser casa” não pode ser somente algo espiritual, uma boa intenção. Precisa de ser encarnado e vivido de modo visível, com consequências para quem “abre a casa” e quem é convidado a “entrar”. Assim, consultados os Ouvidores, foi decidido destinar a Renúncia Quaresmal, através da Cáritas Internacional, às vítimas do terramoto na Síria. Todos sabemos o que significa um terramoto nos Açores, também o povo açoriano já foi sujeito de semelhante ajuda fraterna, até de outros países. Agora vamos pensar neles e nas suas casas e vidas a reconstruir.
Mas apela-se igualmente a que as comunidades eclesiais – paroquiais e outras – se organizem para escutar a dor de quem passa por dificuldades comprovadas e não consegue pagar a casa e sustentar a família. O Papa Francisco, na Encíclica Fratelli Tutti (2020), dizia que o mundo “ainda estava longe de uma globalização dos direitos humanos”. E gritava: “a fome é criminosa, a alimentação e a habitação é um direito inalienável” (FT 189). Quem dera que “com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituíssemos um fundo mundial para acabar de vez com a falta de casa e de pão!” (Cf. FT261).
Enquanto dura a crise, seria sinal de verdadeira conversão e de confiança no Evangelho que diz que “a quem dá, ser-lhe-á dado” (Lc 6, 38) e “recebereis 100 vezes mais em casas, campos…” (Cf. Mc 10, 29) que, em cada paróquia, se fizesse o levantamento possível sobre as famílias que estão em dificuldade e se desse uma ajuda monetária cada mês. Se cada paróquia o fizesse, por exemplo com 2 ou 3 famílias, por iniciativa de pessoas individuais ou com a partilha comunitária, não se chegaria a todos, mas já eram umas centenas de atingidos. Também a Cáritas Diocesana estará disponível e empenhada para complementar esta ajuda. Se as comunidades cristãs souberem ser esta “casa” de acolhimento, de escuta, de partilha, de caminho juntos, perceberão como responder e, caso necessário, encaminharão para os Serviços diocesanos da Cáritas. As famílias necessitadas não deveriam sentir receio em fazer presente as suas necessidades. Hoje são eles, amanhã seremos nós. Que bom seria que cada comunidade tratasse dos seus pobres! A fé e o hábito de partilhar aumentariam. Se estivermos apenas à espera que as autoridades tratem deles, ficaremos sempre mais pobres de valores humanos e de espírito cristão. Nas paróquias onde a semente desta “fé confiante e carismática” dá prioridade às pessoas, até as obras materiais, quando não urgentes, podem ser adiadas. É utopia? Todo o Evangelho de Jesus tem o Seu sonho da utopia que, felizmente, muitos homens e mulheres partilham. Será que “quando vier o Filho do Homem encontrará fé sobre a terra? (Lc 18, 1-8)
2- … Eu (Jesus) fui abusado e tu levantaste-me; Eu (Jesus) estava em risco e tu avisaste-me! (Cf. Mt 25, 35)
É igualmente incontornável nesta Quaresma a questão dos abusos de menores no âmbito da Igreja Católica. A Igreja solicitou este estudo que ajudará a definir com maior rigor e conhecimento uma estratégia para o futuro que impeça a repetição de quaisquer tipo de abusos e dê melhores garantias de que as nossas comunidades são seguras e saudáveis, onde os mais frágeis encontrem um porto seguro. Deram-nos um Relatório cru e tormentoso para quem o ouviu ou leu, quase inacreditável! Bastaria ser um só menor abusado para causar tristeza e vergonha. Foi nesta Igreja que amamos e com pessoas que dela fazem ou faziam parte que tal aconteceu. A estas vítimas que eram menores e indefesas peço que sejam capazes de atender o pedido de perdão que lhes faço em nome dos que nunca o quiseram fazer. Se alguém abusou, está a tempo de o assumir com dignidade aceitando as consequências. Só a Verdade nos liberta! Estas vítimas são o Corpo de Cristo ferido e ultrajado e, nesta Quaresma, para elas vai a nossa oração e disponibilidade no apoio. A estima e a disponibilidade para apoiar nunca prescrevem, nem deixaremos que prescreva. Uma equipa de leigos, profissionais de várias áreas, estão disponíveis para ouvir, ajudar a curar as feridas e a encaminhar quando necessário. A Diocese garantirá que não faltarão meios humanos e financeiros para este esforço de acompanhamento. Os que preferiram permanecer em silêncio até agora, podem ainda fazê-lo, se o pretenderem, participando outros casos à Comissão Diocesana de Menores e Frágeis. Assim, ajudarão a prevenir e banir radicalmente qualquer caso na Igreja e em toda a sociedade. Quem dera bastasse eliminá-lo nos ambientes eclesiais e ficasse tudo resolvido. Mas começamos por aqui e tudo faremos por isso e com tolerância zero!
Apelo a que todos se mobilizem para garantir comunidades seguras, onde os frágeis – doentes, velhinhos, menos capazes, presos, etc. – e os menores nunca sejam molestados e se sintam saudáveis e felizes. Mas depende de todos! Precisamos de estar atentos a sinais de perigo, a tudo fazer para prevenir riscos e sentirmo-nos obrigados em consciência a denunciar situações de possíveis abusos, sejam eles sexuais, de autoridade, de consciência, de liberdade, em razão do ministério ou outro. O Papa já em 2018 convocou “todo o Povo de Deus” a mobilizar-se para banir esta praga. Temos muito caminho a fazer!
Este é ainda o tempo da purificação no seio da Igreja. Qualquer desculpa ou queixume não serve. Apenas o perdão tem futuro. Para todos os padres que nada têm a ver com este submundo, vai a minha palavra e abraço fraterno, encorajando cada um a olhar para este Corpo de Cristo sofredor que são as vítimas e a fixar a sua própria vida na cruz redentora de onde brotará a luz da ressurreição. É para muitos uma Quaresma em carne viva, mas para as vítimas já é uma Quaresma muito mais longa e ainda mais dolorosa.
Os olhos da fé dizem-me que a Igreja, nos tempos difíceis, sempre encontrou uma vida mais autêntica e surgiram grandes renovadores. Que seja cada um de nós com a esperança estampada no rosto. Jesus não abandona a Sua Igreja. Também agora surgirão cristãos renovadores, sejam eles leigos, religiosos ou clérigos. A Igreja surgirá mais forte porque mais humilde, mais santa porque mais capaz de identificar os próprios limites e pecados, mais evangelizadora porque mais sincera, mais purificada, numa palavra, mais evangélica.
Bom e santo percurso quaresmal. Feliz subida ao monte de onde se vê o mundo que precisa de casa e tantas “comunidades casa” prontas a acolher quem anda triste ou passa cansado. Bom e santo percurso quaresmal.
+ Armando, Bispo de Angra